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Autora dos livros TEMPO ESCOLHAS HISTÓRIA e A CORRIDA DE GERAÇÕES - informações nesse blog.

O CONTO DA MALA

 


            Lá estava ela: retangular, porte médio, cinza, neutra, cheia de pó. Em seu íntimo sentia-se jogada, excluída, menosprezada. Já não era o modelo da moda e por motivo incerto ninguém quis levá-la. Bom mesmo havia sido na estação passada, quando a fábrica a entregou a uma das maiores lojas de bolsas e acessórios do país. Sua vaidade foi regada a incontáveis elogios. As vendedoras ficaram tão maravilhadas com seu estilo, comentando umas com as outras que chegaram a um consenso de colocá-la no melhor local da vitrine. E daí começou a desfrutar seu sucesso. Todos que passavam pelo lado de fora da loja admiravam e teciam seus comentários. Uns entravam e pediam para “dar uma olhada” nos detalhes de dentro. Porém nesse momento não conseguia entender o porquê de não chegar a obter o contato solicitado pelo cliente à vendedora. Será que estava sendo trapaceada? Pois era nítido o interesse das pessoas por ela. Foi exatamente assim que ocorreu por sucessivas semanas, as pessoas passavam, comentavam, gostavam, entravam na loja pedindo para vê-la de perto, e acabava aí a trajetória da venda. Não conseguia saber o que acontecia, não entendia. Foi nítido seu sucesso. Sucesso? Entendia por sucesso completo e real se ela realmente tivesse sido vendida, mas nem ao menos da vitrine conseguiu sair.
            Logo após o término de sua fabricação, na sala do estoque, já sonhava com seu futuro brilhante, cheio de aventuras, passeios, descobertas de novos horizontes. Esse seria seu destino, viajar e conhecer. Conhecer lugares, pessoas, estar presente nos maiores eventos e hotéis. Quem sabe até em um desses eventos importantes dos quais se tratam do futuro da humanidade. Sim, havia sido fabricada para isso, ser realmente feliz descobrindo tudo o que é possível para uma mala de seu porte, com sua resistência e ótima qualidade. Sabia que era de uma qualidade de alto nível.
            Pensamentos borbulhando, sonhos e desejos transbordando de seu íntimo. Porém nada de inovador nos acontecimentos. Assim a Mala refletia ao decorrer das horas até que sua atenção foi desviada, mas dessa vez bem diferente do habitual:
            - Ei, você do destaque, está sabendo dos últimos acontecimentos?
            - Ah? Está falando comigo?
            - É claro que sim. Fica aí tão envolvida em seu mundinho, que nem presta atenção no que ocorre ao seu redor.
            - Você acha? Não sei ao certo se é bem assim. Reparo que as pessoas me admiram, sou muito importante.
            - Sério? Acha mesmo?
            - Um momento: antes de qualquer coisa, quem é você?
            - Sou uma bolsa linda de passeio, último design do mais famoso estilista do momento.
            - Azul petróleo não é minha cor favorita.
            - O que você entende de bolsa?
            - Bem, de bolsa especificamente não entendo muito, porém estou concentrada em padrões de qualidade. Estou me preparando para altos voos e você está desviando minha atenção.
            - Tem certeza disso?
            - Disso o que?
            - Altos voos.
            - O que você sabe sobre isso? Você nem me conhece?
            - Você é quem pensa. Enquanto posa em local de destaque e concentra-se em seus devaneios, aqui estou a lhe observar e ao mesmo tempo em tudo o que acontece. Sei muito bem onde foi fabricada e de suas pretensões. Também venho de uma fabricação voltada para um público denominado Classe A, porém não estou presa ao pequeno mundinho em que você se encontra. Estou a observar tudo e todos, assim consigo analisar melhor o que de fato poderá acontecer.
            - Não sei aonde deseja chegar com toda essa conversa, resmungou a Mala.
            - Apenas a lhe ajudar a não ser tão alienada e sonhadora.
            - Você chamou minha atenção questionando se eu sabia sobre os últimos acontecimentos, e quais são? A que se referia? Disse a Mala impaciente.
            - Não disse que vive em um mundinho fechado? Refiro-me à Feira da qual a loja irá participar. Estão escolhendo os melhores produtos para a exposição e venda. O comércio está entrando na chamada queima de estoque da estação.
            A Mala colocou-se em reflexão profunda. Estava muito confusa. Tinha certeza que era um sucesso e, no entanto, não conseguia sair do lugar. Será que pelo menos dessa vez seria escolhida? Em seu íntimo sentia que finalmente estava prestes a realizar seus sonhos. Ao mesmo tempo, sua vaidade era tão dominante que não conseguia compreender o que a Bolsa tentava alertá-la. Será que ela queria ocupar o seu lugar de destaque, ou realmente tentava uma amizade? De qualquer forma tentaria uma aproximação, pois a Bolsa demonstrava ter um conhecimento maior do que a Mala atingira nos últimos tempos. Assim, conseguiria ficar atualizada e tirar suas próprias conclusões, descobrindo o motivo de sua estagnação nas vendas.
            - Bolsa, você sabe me dizer se as escolhas para a feira já foram iniciadas?
            - Agora acredito que você está ficando um pouco mais atenta, embora pareça ainda estar no mundo da lua.
            - Você tem ou não a minha resposta? - a Mala já impaciente.
            - Calma! Tenho sim! Todas nós da vitrine estaremos presentes na Feira representando o final da estação.
            - Maravilha! Até que enfim estou concretizando meus desejos!
            - Posso saber quais são seus desejos? – questionou a curiosa Bolsa.
            - Ora, acredito que sejam os mesmos que os seus, viajar pelo mundo, freqüentar os melhores hotéis, entre outros, pois eu tenho plena consciência de que faço parte de uma linha especial e muito cara para fabricação, e de que a pessoa que me comprar será para tal finalidade.
            - Usando a lógica está correta, porém espero que não esteja se esquecendo de suas parceiras.
            - Parceiras? Como assim? – questionou a Mala surpresa.
            - Ora, as suas réplicas. Então nem ao menos desconfiou de que enquanto as pessoas a viam na vitrine e entravam na loja para verem os detalhes você nunca saiu do lugar?
            - Então existem outras iguais a mim?
            - Eu não diria iguais, mas com as mesmas características, detalhes de fabricação, cor, entre outros adjetivos, sem dúvida alguma.
            Foi então que a Mala percebeu o quão era egocêntrica. Em nenhum momento parou para prestar atenção de que poderia haver outras com as mesmas características que ela. Em nenhum momento também reparou que havia vários modelos diferentes com outras qualidades e utilidades. O universo que a Mala vivia até o momento resumia-se na posição de destaque na vitrine e em valorizar suas qualidades, esquecendo-se dos demais. Porém ainda possuía o desejo de realizar seus sonhos de viajar pelo mundo, conhecer lugares e ser útil, pois foi para essa finalidade que fora fabricada. Sim, estava correta, durante um período ficara dormente em relação à ignorância da existência de suas semelhantes, mas ainda havia tempo para o sucesso e realizações. Poderia ser escolhida obtendo a oportunidade.
            - Bolsa! Então foi por isso que nunca saí da vitrine! Sempre quando alguém adentrava na loja desejando conhecer-me melhor, a vendedora mostrava outra com as mesmas características minhas. E caso a cliente gostasse, era a outra que era comprada. Eu me reduzia apenas a uma amostra. Agora consigo compreender.
            - Nossa! Achei que jamais conseguiria visualizar essa situação! – exclamou a Bolsa aliviada pela conquista da colega.
            - Pois bem, ainda sinto-me muito feliz e esperançosa. Primeiro porque percebo que faço muito sucesso na vitrine e chamo a atenção dos clientes. Assim, não terei dificuldades em ser comprada na Feira.
            - Sem dúvida! Ainda mais porque só resta você nesta cor e tamanho, és única! Pensemos positivamente. É assim que venho agindo. A minha fabricação foi em larga escala, porém, essa loja adquiriu uma pequena quantidade para revenda, e mesmo assim há algumas retidas no estoque.
            - Fique tranquila, tudo acabará bem. Todas iremos para nossos devidos fins.
            - Espero que façamos grande sucesso na Feira. Ouvi falar que essa é de renome internacional e com uma enorme frequência de compradores durante todo o período de exposição.
            - Estamos no caminho certo. – desabafou a Mala com imensa esperança.
            As duas ficaram sonhando com todas as possibilidades que poderiam acontecer durante a exposição na Feira. Sabiam que possuíam ótimas qualificações e desejavam muito conseguir realizar seus objetivos tanto funcionais como pessoais. A concorrência era árdua, mas já haviam conseguido um grande avanço pelo fato de participação no evento. Estavam no caminho correto, embora a insegurança pairasse no ar, a determinação era o apoio favorável. Precisavam apenas de um bom vendedor. Essa influência era fundamental para o sucesso.
            Durante as próximas semanas a ansiedade e a confiança aumentaram e o excesso de vaidade diminuiu na Mala. A Bolsa, sempre mais ponderada, aguardava os acontecimentos observando a movimentação. Foram transportadas em caixas, no caminhão que representava a loja da qual faziam parte. A viagem foi tranquila e confortável, devido à embalagem em que foram embrulhadas para que não houvesse nenhum dano em seu material. Afinal, a aparência é um dos principais fatores nesse ramo de atividade.
            Mala aproveitou para fazer um levantamento em seu eu interior. O que realmente desejava? Havia aprendido muito sobre ímpetos, realizações, convivência, objetivos. Uma infinidade de qualificações e características que se pode, deve-se ou não levar na bagagem. Diminuíra a vaidade, pois essa a cegava da convivência com as demais. Mas não deixava de valorizar-se. Conhecia seu potencial e também aprendera que não dependia somente dela a realização para as finalidades desejadas. Aprendeu também a preocupar-se com as demais. Na medida certa, sem exageros. A Bolsa fora uma ótima companheira de vitrine. Ensinou dando-lhe dicas de percepção de todo o contexto e no momento também aguardava seu destino.
            - Linda! Era exatamente essa que procurava! Combinará perfeitamente com meus novos sapatos. – exclamou Carla ao deparar-se com Bolsa na prateleira do estande do qual observava.
            Foi assim que Mala viu Bolsa saindo do estande: satisfeita por fazer uma pessoa, aparentemente boa, feliz. Obteve a oportunidade de despedir-se e dizer que estava contente pela sua conquista.
            Durante todo o dia o estande esteve muito movimentado. Entravam curiosos, observadores e compradores. As vendas realmente rendiam um excelente resultado. Mas Mala iniciara um desânimo sem igual. Via suas colegas indo embora e ela continuava ali, apenas no mostruário. Será que ainda não seria sua vez? Não queria nem imaginar um retorno à loja e dessa vez ocupar um cantinho escondido na prateleira ou até mesmo ficar guardada no estoque para a próxima estação. Não! Isso não!
            Foi então, no início da noite, que entrou um homem alto, bem apessoado no interior do estande e questionou à atendente:
            - Por gentileza, você teria uma carteira para documentos?
            - Claro senhor. Tem preferência por cores? Veja esses modelos.
            Mala não acreditou. Tinha certeza de que agora seria sua vez.
            - Ficarei com essa. Porém meu principal objetivo é de adquirir uma mala. Sou médico e vivo viajando pelo mundo em razão de congressos e já passou da hora de adquirir uma mala nova para cumprir meus compromissos. O tamanho daquela ali é exatamente o que preciso. Se puder fazer a gentileza de dizer o valor do total da compra, vou levá-la.
            - Sim senhor. Dirija-se ao caixa. Obrigada pela preferência!

            Foi assim que Mala saiu satisfeita. Ouvira as pretensões de seu condutor e agora tinha a certeza de que tudo tem sua hora certa! 

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